2.19.2003

Reportagem sobre o hospital velho: É isto o que Seia merece?

O velho hospital está moribundo. O novo, está morto.

A história
O Hospital de Seia todos os anos, por esta altura, "rebenta" pelas costuras.
Janeiro e Fevereiro são os meses das gripes, das pneumonias. Estamos, infelizmente, habituados a que, nestes meses, não haja dignidade nem privacidade para aqueles que tiverem o azar de cair naquela casa.

Mas este ano é pior.
Desde Novembro que o espectáculo indescritível dos doentes a dormir nos corredores não tem, praticamente, parado.
E não é só dormir noite após noite. É estar rodeado de outros utentes, visitas, doentes, funcionários no exercício das suas funções, toda a gente que tem, também ela, de se deslocar pelos corredores de acesso do velho Hospital.

E ali ficam. Horas. Dias.
Tempos infindos para quem tem, por Lei, o direito à sua privacidade e ao seu recolhimento na doença.
Tem na Lei. Mas em Seia a Lei é outra. Em Seia a Lei é a da falta de espaço e de instalações condignas, de falta de força reivindicativa, de falta de vontade política de quem tem a obrigação de gerir os nossos impostos de forma justa, e de falta de vontade popular também - porque não dizê-lo - já que não se vislumbra nenhum tipo de luta popular reivindicativa contra esta infâmia.
- Em Seia "temos estádios de futebol de centenas de milhares de contos que, embora por inaugurar, já gastam, há mais de um ano, verdadeiras fortunas ao orçamento", diz-se.
- Em Seia "temos fontes de 30 mil contos de mármore invisível e praias fluviais emparedadas de 55 mil contos", lamenta-se.
- Em Seia, temos "pavilhões que definharam e tanques de chapinhagem que se agigantaram", comenta-se.

O que temos em Seia é muita maravilha da genética, e da arquitectura.
E destas, a mais incrível é o Hospital.
De classe 1, segundo a Directora Clínica.
Do mais baixo que há em classificações hospitalares. Por isso, não pode transferir doentes para outras unidades. Apenas pode receber delas os que por lá estão excedentários, e que vêm engrossar o rol dos que já cá estão, sabe Deus como.

Nos corredores. A dormir. A comer e a beber. E a fazer as suas necessidades.
E a serem transportados para o bloco novo, pela rua, sob vento e chuva e frio e condições climatéricas de toda a espécie.
Quando não podem ser levados até ao 1º piso às costas dos enfermeiros mais robustos, como na idade média.
Perguntamo-nos se haverá maior indignidade do que esta, perpetrada sobre aqueles que, porque idosos e doentes, mais fragilizados se encontram neste particular momento das suas vidas.
Achamos que não.
Ninguém que tenha o azar de presenciar este "espectáculo Dantesco" (como lhe chamou um enfermeiro) pode ficar insensível.

- "Então os nossos impostos só servem para se construírem mega-estádios de futebol? – perguntam os funcionários.
- "Então há dinheiro para se manterem administradores hospitalares em triplicado na Guarda, enquanto em Seia é isto? " – desabafou um médico à nossa reportagem.
-"E eles lá continuam a reivindicar. Acham-se ultrapassados por Castelo Branco, para onde foram transferidas algumas especialidades, e anda tudo numa roda-viva. E aqui?"

A Directora Clínica
Entrevistámos a Directora Clínica, Dra Margarida Ascenção, que pronta e gentilmente nos recebeu, depois de um extenuante dia de trabalho.

PE: Sra Dra, a que se deve esta situação de quase rotura nas urgências do Hospital de Seia?
MA: A situação não é de rotura na urgência, é mais de rotura a nível do internamento, uma vez que em 2002 tivémos uma taxa de ocupação superior a 98%, e neste momento não temos camas disponiveis no internamento, em particular de medicina, e temos inclusivamente já 2 camas nos corredores, mas ainda assim a capacidade de resposta é limitada por questões do espaço físico. Como tal, a urgência está sobrecarregada, sobretudo o serviço de observações, porque o internamento não dá vazão. E portanto, os doentes ficam a aguardar internamento na medicina, no serviço de urgência e sala de observações.
PE: Mas não acha que são condições sub-humanas, estas, a que são sujeitas as pessoas já de uma certa idade, privadas da sua privacidade, ao estarem expostas a quem passa… não haveria outra solução?
MA: Aqui no Hospital de Seia não há outra solução exactamente pelas dificuldades de espaço físico. Neste momento estamos a tentar organizar os serviços administrativos na parte nova do edifício, no sentido de disponibilizar gabinetes médicos para se poder criar uma Unidade de Internamento neste edificio novo. Será uma unidade de internamento para o Hospital de dia e também para estas situações de grande sobrecarga de doentes, porque o afluxo dos doentes à nossa Instituição é cada vez maior.
PE: E não haveria possibilidade de transferir estes doentes para outras Unidades?
MA:Infelizmente as outras Unidades estão também sobrecarregadas, e infelizmente quando isto acontece, as outras Unidades transferem os seus doentes para nós. Ora nós, como somos Hospital nível 1 – o mais baixo – não temos possibilidade de os transferir (não o podemos fazer) para outros Hospitais.
PE:Nas suas conversas com o Sr Presidente da Câmara já lhe foi adiantada alguma solução para o Novo Hospital de Seia?
MA: Sim. A solução para o Novo Hospital está a ser analisada pelo Sr Presidente da Câmara e pelo Ministério da Saúde no sentido de solucionar todos os problemas que existem na parte antiga do edificio, nomeadamente a falta de espaço.
PE: Esta solução de criação de nova enfermaria no espaço novo do HS quando é que vai entrar em funções?
MA:Hoje mesmo iniciou-se a mudança dos serviços administrativos, em princípio para a semana esperamos que entre em funcionamento.
PE: qual a capacidade deste novo espaço?
MA: 6 camas
PE: Mesmo assim, não é solução…
MA: Não é solução, mas é o que é possível neste momento.
PE: Contingências de corte orçamental, também?
MA: Não. Exclusivamente contingências de espaço físico.

(Como a vida custa a todos e estes preciosos momentos de reportagem não se podem desperdiçar, não resistimos a colocar-lhe uma questão lateral, algo incómoda, sobre um "zum-zum" que anda a atormentar-nos, relativo a queixas de familiares de idosos acolhidos em lares de terceira idade da região).

PE: Sra Dra, uma outra questão: temos tido notícia que alguns idosos provenientes de lares de terceira idade muitas vezes chegam em más condições ao Hospital. Tem sido verdade?
ME: Há algumas situações de doentes que nos chegam em mau estado físico. Tem a ver muito com o tipo de doentes e com a patologia associada…
PE: Mas é sintomático que normalmente os pacientes que vêm de alguns lares de terceira idade cheguem desidratados e mal alimentados?
ME: Não é regra, embora haja casos particulares de pacientes que nos chegam nesse estado.
PE: Qual é a atitude do Hospital nesses casos?
MA: A atitude é contactar os lares no sentido de referir o caso particular e de os alertar para essas situações. Tem sido feita formação aos profissionais dos lares, auxiliares da acção médica, informação sobre dietas…


O Presidente
Enquanto fotografávamos os doentes alinhados em macas nos corredores, e a serem transportados à chuva e ao vento entre edifícios, encontrámos o sr Presidente da Câmara, que se deslocara ao HS por motivos pessoais.

Eduardo Brito contrasta, em termos anímicos, com o optimismo da Directora Clínica. Questionado, junto dos doentes deitados nos corredores, sobre a actual situação de excesso de pacientes nas urgências do HS, respondeu que estava muito triste por verificar esta situação, e se encontrava bastante preocupado por isso.
À nossa pergunta sobre se haveria solução para o novo Hospital, respondeu que a solução não estaria para breve uma vez que a proposta para a construção do novo Hospital está neste momento no Ministério da Saúde, e este Ministério não tem respondido às solicitações da CMS, pelo que, neste momento, todo o processo se encontra em "ponto morto".
Nada mais desanimador.
Um Hospital velho a lutar contra a morte já tardia e um Hospital novo morto à nascença… triste sina a nossa.

A luta
É de salientar, no meio de toda esta desgraça, e pela positiva, o profissionalismo e a dedicação de todos os profissionais ligados ao Hospital - enfermeiros, médicos, pessoal auxiliar e administrativo - que conseguem desempenhar com brio e voluntarismo as suas difíceis tarefas, com as parcas condições existentes no velho Hospital de Seia.

Um Muito Obrigado da nossa parte a todos esses Grandes profissionais e uma palavra de ânimo ao nosso Presidente:
Que não se dê por vencido, na adversidade.
Que siga o exemplo de uma jovem Directora Clínica de um velho Hospital, e não baixe os braços, atirando a toalha ao chão.
Que tenha a coragem de convocar e englobar a população nesta cruzada pelos nossos elementares direitos de cidadãos, que os Senenses não lhe virarão as costas nesta hora, e marcharão convictamente, temos a certeza, a seu lado.
Que continue a lutar, mesmo que essa luta por vezes pareça inglória, pela Infra-Estrutura que mais falta faz a Seia e às suas gentes.
É seu dever lutar.
E é nossa obrigação apoiá-lo sem reservas nessa luta.


Entrevistas de Fernando Paninho
Texto de João Tilly

2.08.2003

Justiça? Onde?

Três em cada quatro presos preventivos, depois de ano e meio de vergonhosa reclusão em prisões onde a droga e as violações são o dia-a-dia, acabam por ser libertados por falta de provas, em Portugal.
Enquanto andamos preocupados com o Carlos Cruz, a maioria dos criminosos locais passeiam-se descansadamente entre nós, todas as noites, na nossa cidade .

Depois de Bibi e Carlos Cruz, nada mais na Justiça Portuguesa ficará na mesma. Diz o bastonário e eu subscrevo. Mas pelas razões contrárias.
Quando este desgraçadado caso terminar – se alguma vez se apurar o que quer que seja – os portugueses irão finalmente perceber que, se até aqui desconfiavam dos métodos judiciários, a partir de então terão todas as razões do mundo para desacreditar de forma militante da justiça que se tem praticado por aqui.
Mesmo os mais crédulos e bonacheirões deixarão de ter qualquer argumento para crer na instituição que mais envergonha, em termos internacionais, um estado terceiro-mundista convicto, permanentemente auto-apelidado de Estado de Direito, vá-se lá saber porquê.

Não o é, de facto. Nem nunca o foi, rigorosamente. Basta consultar as dezenas de condenações anuais sentenciadas ao estado português pelos Tribunais Internacionais, em que não há memória de o nosso país ser absolvido em nenhum processo.
É permanentemente condenado.
Talvez a Justiça esteja a atravessar, neste momento, a fase menos negra da sua história, mas a velocidade e a exigência dos tempos actuais ultrapassaram definitivamente o seu marasmo burocrático. E quando decide agir, por falta de uma continuada cultura de intervenção, fá-lo da forma mais desajeitada.

A descredibilização da nossa Justiça deve-se fundamentalmente à prescrição dos principais (e inúmeros) processos; à impunidade dos biliões da alta-finança - que fogem ao fisco todos os dias, enquanto o Zé da esquina é condenado a prisão por não poder pagar uns tostões de IVA - à lentidão mortal das respostas; ao impune financiamento partidário; ao súbito aparecimento de sacos azuis por todo o lado de forma instituída e até socialmente aceite; às grandes redes de corrupção intocáveis.

A isto já estávamos todos habituados e pior não podia, pensávamos, acontecer.
Afinal podia.
Pior é quando a máquina gripada da justiça decide dar uns golpes de rins, relativamente ao expectável, como que querendo mostrar ao povo que está a começar a funcionar.
Aí, a dimensão do descalabro torna-se grotesca.

A começar pelo processo de detenção: as últimas - no futebol, câmaras municipais e pedofilia - têm sido realizadas da forma mais Kafkiana que imaginar se possa.
A moda parece ser a da perseguição dos "alvos", pelos investigadores, durante dias seguidos, já com os mandados de captura em seu poder, e sem os deterem. Um jogo inacreditável do gato e do rato, à revelia da ordem do tribunal, que só pode servir propósitos pouco claros, por parte de quem deve, justamente, à transparência e à rectidão, a razão de ser da sua profissão.
De repente, talvez porque se aborrecem do jogo, decidem acabar com ele e deter, finalmente, os suspeitos.E então tem que ser sempre da forma mais aparatosa, às tantas da noite e ao fim-de-semana, quando o impacto dos noticiários é maior - dada a disponibilidade da população.
Deve dar mais "pica", porventura, aos "caçadores", o acelerar a fundo, com os suspeitos detidos, por meio dos holofotes das câmeras das televisões.

Aqui começa o martírio dos indiciados e a continuação do jogo dos policiais. Mais umas horas até o juiz estar pronto para começar a interrogar (quando decide interrogar!) os detidos, e chegam-se as 4 e as 5 da manhã.
Os detidos, em pleno stress desde as 10 da noite, são ouvidos (quando são, repito) às altas da madrugada, completamente confundidos e decididamente fora da posse de todas suas faculdades mentais, psicológicas e físicas.
E o que lhes perguntam? Questões laterais de circunstância, porque o detido e o seu advogado (se arranjar um às 4 da manhã) não terão, nesta fase, acesso ao conteúdo da acusação de que está a ser vítima. E digo vítima, propositadamente. Porque toda a gente é inocente até transitar em julgado a última sentença do seu processo. O que, em Portugal, com os milhentos recursos possíveis e a totolótica previsibilidade das suas diferentes sentenças, pode demorar mais do que uma década. A vida do arguido.

Por isso temos 50% da população prisional em regime de prisão preventiva. Dos quais, segundo os números do Ministério da Justiça, cerca de 75% são absolvidos. E quando? Depois de um tempo médio de reclusão preventiva de 16 meses.
Não há outro país na Europa e não sei se no mundo inteiro, que ostente internacionalmente tamanha vergonha, tamanha injustiça. Trata-se, na minha opinião, de um verdadeiro atentado contra a cidadania (pelo menos por negligência).

Três em quatro presos preventivos, depois de ano e meio de reclusão vergonhosa, são libertados por falta de provas, em Portugal.
Três em quatro cidadãos presos preventivamente estavam, portanto, indevidamente presos.

Entretanto, enquanto andamos preocupados com o Carlos Cruz, se ele é culpado ou inocente, se ele é pedófilo ou se o tramaram, a maioria dos criminosos locais passeiam-se descontraidamente entre nós, todas as noites, na nossa cidade.
Um apanhado das dezenas de mensagens inscritas do fórum a este respeito demonstra que todos os cidadãos sabem quem eles são. Estão todos socialmente identificados.

Sabemos que eles vendem droga a miúdos de 14 anos. Que não trabalham a não ser nessa actividade. Que não pagam impostos, nem são presos por isso. Que não têm carta de condução. Que conduzem carros ilegais. E que são repetidamente presentes a tribunal acusados, pela GNR, dos mesmos delitos.
E que se vêm embora, mais rápido que os polícias, aguardando em liberdade, a próxima apresentação ao Juiz.
E que continuam a vender droga a miúdos de 14 anos. E que continuam sem trabalhar. E que continuam a conduzir carros ilegais sem carta…

E nós, os senenses, cá continuamos preocupados com o Carlos Cruz.
João Tilly